Justiça em Movimento: Histórias Que Redefiniram Meu Olhar Sobre o Direito
Na prática da advocacia, o conhecimento técnico é indispensável, mas o que realmente molda a trajetória de um profissional do Direito são as histórias humanas por trás dos processos. Cada cliente, cada causa e cada julgamento trazem uma nova perspectiva, novas perguntas e, muitas vezes, novas convicções. Trabalhar com casos marcantes ao longo dos anos não apenas me formou como advogado, mas me transformou como pessoa. Nesta narrativa, compartilho algumas experiências vividas em tribunais que foram além da argumentação jurídica e me conectaram com a essência da justiça.
Um caso de expressão e resistência
Lembro com clareza do dia em que assumi a defesa de uma professora universitária acusada de incitar a desordem em sala de aula por expressar opiniões políticas contrárias à direção da instituição. O caso, embora aparentemente simples, envolvia um debate sensível sobre liberdade de expressão, especialmente em ambientes acadêmicos.
Durante o processo, ficou evidente que havia uma tentativa velada de silenciar vozes críticas. A estratégia da acusação buscava apresentar as falas da docente como provocativas, quando, na verdade, eram manifestações legítimas dentro de um ambiente que deveria justamente promover o pensamento livre. A defesa mostrou que a educação precisa ser espaço de debate, de múltiplas ideias e de contestação respeitosa.
A decisão que absolveu minha cliente não foi apenas uma vitória individual, mas também um reconhecimento do papel essencial dos educadores na construção do pensamento crítico. A Justiça, nesse caso, reafirmou que o saber deve ser livre e que o silêncio imposto nunca pode ser regra.
O peso de um erro policial
Outro julgamento que me marcou profundamente envolveu a defesa de um adolescente acusado injustamente de tráfico de drogas. O jovem foi preso após uma abordagem policial sem mandado e sem qualquer prova material concreta. A única “evidência” era um depoimento vago de um agente que alegava ter visto o garoto em atitude suspeita.
A realidade do processo era dura. O jovem, negro, morador de periferia e sem antecedentes, se via diante de uma possível condenação baseada apenas em estereótipos. Assumir essa causa significava enfrentar não apenas o sistema judicial, mas também a estrutura preconceituosa que, infelizmente, ainda atravessa muitas instituições.
Durante o julgamento, conseguimos mostrar, com base em provas técnicas, que o rapaz não estava sequer no local no momento indicado pela acusação. O juiz reconheceu a fragilidade das provas e determinou a absolvição imediata. A sensação de justiça feita foi acompanhada pela amarga constatação de que, se aquele garoto não tivesse tido acesso à defesa adequada, talvez sua história tivesse um desfecho diferente. Esse caso me ensinou que o Direito também é um escudo contra o preconceito institucionalizado.
Uma batalha em nome da terra
Uma das experiências mais intensas da minha carreira foi representar pequenos agricultores em um litígio contra uma empresa agroindustrial que tentava expulsá-los de uma área cultivada há décadas. O conflito envolvia não apenas questões fundiárias, mas também memória, pertencimento e direito à sobrevivência.
Os agricultores, em sua maioria idosos, não tinham documentação formal, mas possuíam uma relação histórica com a terra. A empresa, por outro lado, apresentava registros recentes, obtidos em um contexto de grilagem que conseguimos comprovar ao longo do processo. Foi necessário um trabalho minucioso de coleta de provas, depoimentos e reconstituição histórica para mostrar que aquelas pessoas não estavam invadindo nada — estavam apenas vivendo e produzindo onde sempre estiveram.
A decisão favorável às famílias garantiu o direito de permanência e a titulação definitiva das terras. Mais do que um resultado jurídico, foi uma vitória da justiça social e do respeito ao modo de vida tradicional. Foi um daqueles momentos em que o Direito cumpriu seu papel de proteger os mais vulneráveis.
A luta por um corpo livre de violência
Outro julgamento que me tocou de maneira profunda foi o de uma jovem que denunciou um ex-companheiro por violência psicológica e ameaças constantes. Apesar de não haver agressões físicas registradas, o sofrimento mental causado pela manipulação, controle e chantagens emocionais era evidente.
Esse foi um processo difícil, pois envolvia desmistificar a ideia de que só há violência quando há marcas visíveis. A defesa do acusado tentou desqualificar o depoimento da vítima com base em argumentos machistas e ofensivos, tentando pintar a jovem como “instável” e “exagerada”.
Trabalhamos com perícias psicológicas, registros de mensagens e testemunhos de amigas próximas para montar um retrato claro do abuso sofrido. A condenação foi uma das primeiras daquela comarca com base na Lei Maria da Penha por violência psicológica. Esse julgamento foi um marco não apenas para a cliente, mas para todas as mulheres que vivem a dor calada de uma violência invisível, porém devastadora.
Um pedido por educação justa
Houve também o caso de um garoto com Transtorno do Espectro Autista cuja escola particular se recusava a oferecer acompanhamento especializado. A justificativa da instituição era que o aluno “dificultava o ritmo das aulas”, o que por si só já revelava um grave despreparo.
Ao entrar com a ação, nos deparamos com uma barreira ainda maior: a resistência cultural de muitos profissionais da educação em aceitar a inclusão como um direito, e não como um favor. Conseguimos reunir provas contundentes sobre a negligência da escola e apresentar jurisprudência que consolidava o dever de adaptar o ensino às necessidades dos alunos.
A decisão judicial obrigou a instituição a fornecer os recursos necessários e foi usada posteriormente como referência em outras ações semelhantes. A partir daí, entendi que lutar por uma educação inclusiva é também um ato de transformação social.
Finais sobre o poder de cada julgamento
Cada um desses casos me ensinou que a Justiça não se limita à aplicação da lei. Ela ganha vida quando toca realidades, enfrenta desigualdades e constrói pontes entre direitos e dignidade. A atuação jurídica, quando feita com humanidade, é capaz de curar feridas, corrigir erros e dar novos significados às histórias interrompidas.
Mais do que sentenças e decisões, esses julgamentos foram jornadas que exigiram coragem, escuta e compromisso. O que aprendi em cada um deles não está apenas nos códigos e manuais, mas no olhar daqueles que confiaram em mim para lutar por sua verdade. E é por isso que sigo acreditando: a Justiça, quando se move por empatia e ética, transforma vidas.
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